Foto: Alfeu Tavares/Folha de Pernambuco (Foto: RCI FM 98 )
Um carnaval que será lembrado para sempre por sua ausência. Nada de Marco Zero lotado, ladeiras de Olinda fervendo, carros alegóricos na Marquês de Sapucaí, ou trios elétricos nos circuitos de Salvador. A pandemia da Covid-19, que já ocasionou a morte de quase 250 mil brasileiros, trouxe este cenário que, ao que tudo indica, vai persistir.
A hipótese da realização da festa em outra data ainda este ano, até aqui, é um desfecho extremamente improvável diante da escalada de mortes e da “marcha lenta” da imunização no Brasil. À Folha de Pernambuco, o historiador Leonardo Dantas Silva conta que jamais o Brasil viveu um ano sem carnaval, desde que a festa se popularizou no País. “Nem na gripe espanhola houve algo assim. Inclusive, ocorreu um grande carnaval em 1919 (a gripe chegou ao Brasil em meados de 1918). Em 2021, estamos vivendo a história”, resume.
O mais perto que o Brasil chegou de cancelar o carnaval foi com tentativas frustradas de adiamento, em 1912 e 1892 que, na prática, resultaram em anos com dois carnavais. As situações, no entanto, eram distintas da atual. E em ambos os casos, a festa não foi realizada em seus dias tradicionais, mas já com uma nova data marcada no calendário.
Leonardo explica que, em 1912, na ocasião da morte do Barão de Rio Branco - ministro das Relações Exteriores do Brasil, há época tido como herói nacional, houve a determinação para que o Carnaval fosse adiado para a semana de Páscoa no País. O barão faleceu em 10 de fevereiro daquele ano, quando faltava uma semana para o início do carnaval. No entanto, o adiamento não teve o efeito esperado. “Decretaram a suspensão do carnaval, mas não vingou. Muito pelo contrário. Houve o carnaval normal, em fevereiro e, na Semana Santa, ainda ocorreu outro carnaval”, conta Leonardo.
Ele ressalta que naquela ocasião ainda não havia aporte do poder público para a realização da festa, portanto, o impacto de uma determinação do governo, como a que ocorre em 2021, era minimizado. “O carnaval ainda não era oficial. Cada agremiação fazia o seu, não necessitava de dinheiro público. O carnaval de rua foi oficializado na década de 1930. Em Pernambuco, com a criação da Federação Carnavalesca (1935), os clubes começaram a receber aporte de recursos da Prefeitura e do Governo do Estado”, frisa.
A outra ocasião em que o carnaval foi adiado ocorreu 20 anos antes do luto pelo Barão de Rio Branco, em 1892, e a motivação foi mais próxima da realidade atual. As autoridades temiam a propagação de doenças como a febre amarela por meio da aglomeração dos foliões no calor e então tiveram a ideia de adiar a festa para junho. O resultado, porém, foi a realização de duas festas: uma em fevereiro e outra no meio do ano.
Sem festa e com regras
Para 2021, o respeito ao adiamento do carnaval é uma preocupação nos principais polos carnavalescos do País. Evitar aglomerações é uma das formas de reduzir a disseminação da Covid-19. Na capital pernambucana, por exemplo, os bares, restaurantes e o comércio de rua do Bairro do Recife, não podem funcionar neste sábado e domingo. A proibição é vigente desde a noite de sexta e também vale para os estabelecimentos similares localizados no Sítio Histórico de Olinda. Blocos e troças estão proibidos e a gravação de “lives” devem reunir, no máximo, dez pessoas.
A fiscalização será intensificada também em Salvador, onde a folia teria começado na última quinta-feira, se não houvesse pandemia. Até a próxima terça-feira, o poder público promete fiscalizar os bairros da Barra, Ondina, Centro e Pelourinho, por onde historicamente passam os trios elétricos. O poder público atua também para evitar a circulação do comércio irregular nas ruas, como forma de inibir a aglomeração de pessoas.
Na capital carioca, o Sambódromo, maior símbolo do carnaval da cidade, é o atestado de tempos pandêmicos. Na Marquês de Sapucaí não passarão carros alegóricos, mas sim veículos levando idosos para serem imunizados no posto de vacinação drive-thru contra Covid-19 instalado no local. A cidade do Rio de Janeiro, inclusive, desde a 0h de sexta, vetou qualquer aglomeração em vias públicas, estabelecimentos e quiosques, com ou sem equipamento de som. O decreto assinado pelo prefeito Eduardo Paes (MDB) prevê multa, interdição e até cassação de alvará do local que for flagrado sediando aglomeração por uma das 1,5 mil câmeras que servem para monitorar a movimentação.
A maior cidade do Brasil, São Paulo, que nos últimos anos vem se tornando um gigantesco polo carnavalesco, também não terá samba. O sambódromo do Anhembi completará 30 anos de existência vazio. A capital paulista contará com restrições durante o carnaval, no entanto, nada além do que já obedece e consta em decreto do governador do Estado, João Dória (PSDB). As restrições, porém, são menores do que as que ocorreram durante o Natal e o Ano Novo, quando a capital estava inserida na fase vermelha. Atualmente a Grande São Paulo, incluída a capital, está na fase amarela, que permite, entre outras coisas, a venda de bebidas até 20h, mas proíbe aglomerações em festas e shows. E para evitar viagens para o litoral do estado, municípios como Santos e Guarujá contam com barreiras sanitárias e impedem a entrada de ônibus de turismo.
Sem a tradição, frustração
De acordo com a Fundação Joaquim Nabuco, o carnaval chegou ao Brasil no início do século XVIII, ainda com o nome de Entrudo. A nomenclatura tinha influência de portugueses da Ilha da Madeira, Açores e Cabo Verde e a brincadeira consistia em correrias e em melar os outros com farinha e água com limão. Séculos de história modificaram o festejo, que já foi festa da elite, até ser apropriado e massificado, tornando-se símbolo do País. A identidade do Brasil passa pelo carnaval e um ano sem a festa não passa despercebido.
Para a professora de Antropologia da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Grazia Cardoso, o ineditismo de um ano sem carnaval, além de um marco histórico, acaba atingindo o ânimo do brasileiro. “Do ponto de vista das pessoas e dos costumes, sabemos que o brasileiro é festivo e o carnaval é o momento de extravasar. Estamos há um ano em isolamento, nessa situação caótica”, enfatiza.
Para ela, sem o “cano de escape” da folia, a tendência é de que o peso trazido pelo cenário pandêmico ganhe a impressão de ser ainda maior. “O brasileiro, via de regra, é extrovertido, e a frustração deve aumentar sem o carnaval. Aquele momento de colocar tudo para fora não vai ocorrer, então isso vai se somar à toda a crise que estamos vivendo. Os brasileiros estarão mais tristes, na verdade, em uma tristeza que se aprofunda”, avalia.
Folha de Pernambuco
RCI FM 98.5 Com você todo dia!